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terça-feira, 3 de janeiro de 2012

MEMÓRIAS DO LICEU D. JOÃO III

Quando alguém me diz que andou no Liceu D. João III, logo percebo que, se não tiver a minha idade, por lá andará, com uma tolerância de mais ou menos 15 anos. Se me disser que andou no José Falcão então a coisa é mais dúbia, pois que tanto pode ter a idade dos meus filhos como a idade que teria hoje o meu Pai. E tudo isto por causa de uma estória cabeluda que passo a contar.

O Colégio da Artes, fundado por D. João III em 1548 para preparar os alunos para a entrada na Universidade, foi extinto em 1836, dando lugar ao Liceu de Coimbra, que viria em 1871 a ocupar o Colégio de S. Bento, situado a Norte do Jardim Botânico, no ponto onde a Rua do Arco da Traição entronca com o Aqueduto de S. Sebastião. Em 1914 o liceu tomou o nome de José Falcão e, anos mais tarde, viu nascer no mesmo edifício um segundo liceu – o Júlio Henriques. Tendo o Colégio de S. Bento ficado acanhado para os dois, construiu-se de raiz um edifício na Av. Afonso Henriques, o qual deveria vir a albergar apenas o Liceu Júlio Henriques. Como, entretanto, foi decidido que Coimbra tivesse apenas um liceu, mandou-se ampliar o novo edifício, onde estava já a funcionar o Júlio Henriques, e meteram-se lá dentro os dois, agora fundidos num só, com a denominação de Liceu D. João III. Esta mudança de patrono não terá sido pacífica – José Falcão, catedrático da Universidade de Coimbra e professor do Liceu de Coimbra, foi um ideólogo do republicanismo enquanto D. João III tem a mancha de ter trazido para Portugal a Inquisição – pelo que, chegados a 1974, o liceu retomou o nome de José Falcão. Quanto a Júlio Henriques, ilustre meste e cientísta de Botânica, o homem nem era político pelo que não contou para estas contas.
Foi, assim, apeado D. João III, o que não deixa de ser uma injustiça para um rei a quem a cidade deve a transferência definitiva da Universidade de Lisboa para Coimbra. Dito por outras palavras, deve a importância que teve ao longo de cinco séculos, até que outras Universidades fossem criadas em Lisboa e no Porto.
Andei no D. João III "8 - anos - 8", como se escreve nos anúncios das touradas. E o facto de 8 não terem sido 7, logo dá ideia de que aproveitei bem o tempo. Como diria Jorge Sampaio, há mais vida apara além do… liceu!

Lembro-me de quase todos os professores que tive. E muitos foram excelentes. Não podendo evocá-los a todos, citarei apenas um, aliás, uma, que me aturou 7 anos a fio, tantos quantos Jacob servia Labão, pai de Raquel... isso mesmo, Raquel. Era uma santa! Raquel Braga de seu nome, que todas as semanas promovia peditórios nas aulas de Ciências Naturais e que conseguiu, enquanto por lá andei, construir duas casas para famílias pobres com as economias dos alunos. De pequenino se aprendia a ser solidário!

O D. João III tinha várias singularidades. Desde logo era um Liceu Normal (onde os professores faziam os estágios). Como liceus destes só havia três no país, era, paradoxalmente, um liceu anormal... por ser normal!

Mas tinha mais. Sendo um liceu masculino, tinha ainda pelo início dos anos 50 uma meia dúzia de meninas que, para evitar confusões, passavam os intervalos num torreão ao nível do 3º piso, enquanto os recreios da rapaziada se quedavam pelos pisos térreos. É caso para dizer que o princípio Saias para cima! Calças para baixo! não contribuía aqui para aproximar os sexos, mas sim para os manter afastados. Curioso liceu este...

O D. João III tinha um reitor abominável: o Pulga! Corria que tinha vindo da Guarda, onde, uma bela noite, teria sido deixado pendurado pela gola do casaco num cabide da sala dos professores. Bem feita! Se era assim para os professores, como não seria para os alunos? Volta meia volta, metia um cigarro na boca e saía a passar revista às tropas. A rota era desconhecida. A hora não era anunciada. Mas certo era que seria num qualquer intervalo, que avançaria pelos corredores cheios de gaiatos, que à sua frente logo um grito abafado correria a avisar – Reitor! Reitor!, que a malta aterrorizada se coseria às paredes, que algum incauto se mexeria e que as galhetas sairiam fortes, fazendo saltar os putos do lugar, enquanto o reitor seguiria impávido. Estranho liceu este, onde os alunos saltavam enquanto uma pulga andava...

O D. João III tinha as vidraças mais caras do mundo. 60$00 (mais de 30 euros nos dias de hoje!) era quanto o Pulga cobrava aos alunos por um quadradinho de vidro da treta que se partisse. Isto só para o vidro, que para os pregos, o betume e o feitio lá saía mais um par de galhetas e, para a colocação, havia o bom do sô Pedro, carpinteiro de descomunal barriga, cujas calças lembravam um funil de boca tão larga que era preciso abrir a segunda folha das portas para poder entrar nas salas de aula.
O D. João III tinha as suas hierarquias. Quem entrava no 1º ano era recebido pelos do 2º com uma saraivada de caldos no cachaço, enquanto se ouviam as palavras da praxe – Abaixa, bicho! – e os putos se esgueiravam para o recreio por entre um túnel de pernas e braços que me faz hoje lembrar as descrições do selvático canelão à Porta Férrea. Por aqui se vê que o exemplo vem de cima...

Mas a hierarquia mais forte era a dos recreios. Os alunos dos dois primeiros anos coabitavam o recreio do 1º ciclo, para onde dava a carpintaria do sô Pedro. O recreio era um espaço fechado entre edifícios altos, um tanto exíguo, onde as brincadeiras eram o Agarra!, o Bone-catrapone-aí-vai-o-bone! e um jogo proibido dentro do liceu, em que uma bola, feita dum lenço ao qual se davam sucessivos nós, era atirada de baliza a baliza até que viessem as “forças do mal” – o Forte ou outro contínuo de serviço – e a empandeirassem para um canteiro alto, inacessível à garotada. Dizia-se que, a horas mortas, as “forças do mal” pediam a escada de madeira ao sô Pedro e subiam ao canteiro para ir buscar as bolas-de-lenço, donde os ditos seriam desembaraçados, estivessem eles limpos ou ranhosos, que o tempo era de penúria e na praça de Coimbra tudo se vendia.

O grau hierárquico seguinte, o 2º ciclo, era já um luxo. O recreio era um conjunto de espaços amplos, arborizados, com um campo de futebol, um ringue de hóquei e vista directa para as Repúblicas da Boa-Bay-Ela e do Bamus-ó-Bira. Quando os doutores vinham à varanda do 1.º andar e espreitavam por cima do muro do liceu, sentíamo-nos o centro das atenções. E receávamos, até, que estivéssemos a ser espiados para nos raparem mais tarde ou mobilizarem quando fossemos caloiros, não percebendo nós que os maraus estavam era a topar a melhor forma de saltar o muro e roubar a sineta que chamava para as aulas. Afinal eram nossos amigos...
Mas a grande mordomia estava reservada para o 3º ciclo, os 6º e 7º anos. Para esses, o recreio era a rua. Isso dava-nos uma importância nunca vista! Sentíamo-nos finalistas de qualquer coisa, um pé dentro e outro já fora. Quem vinha das aulas práticas trazia ainda vestida a bata branca, meio desabotoada, parecíamos alunos de Medicina... Fumava-se um cigarro, compravam-se pevides – uma barrica pequena ao Pianinho ou um sputnik ao Calmeirão – descia-se até à Cesaltina e ao Piolho. E os mais afortunados, ao ouvir em baixo o barulho duma Vespa vinda do lado de Celas em direcção à Sereia, acorriam às escadas, abriam uns olhos de espanto de quem vê a Deus e voltavam dizendo para os restantes: – Era o Ramin!
Lá dentro dos muros, os que não podiam ainda ver a Deus de tão perto, enrolavam os calções da Ginástica ao nível da cintura – “calções à Ramin” – imitando aquele que não tinha medo de esfolar as pernas para melhor voar ao encontro da bola. Ele era o maior, o ídolo da garotada, aquele cujos "calções em V" melhor cortavam o vento, numa época em que um guarda-redes tinha de ser valente, louco e muito homem, não como os de hoje, que usam calças se está frio, que socam a bola se está molhada ou vem enraivecida e que até põem máscara no hóquei só com medo de partirem os dentes! Maricas!...
E, no domingo, quando Ele mandasse afastar a barreira para, destemido e aventureiro, pegar o inimigo sem ajudas, como o Salvação Barreto fazia no Campo Pequeno, mostrando que maricas eram os do Sporting!, nós haveríamos de pensar que aquela defesa tinha sido feita para a malta do D. João III.

Zé Veloso

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6 Comentários:

Anonymous Manuel Cruz - Leiria disse...

Excelente! Já agora deixo de memória, porque estive com ele várias vezes e tenho ideia que a mota do RAMIN não era Vespa, era uma Lambreta.
Contava-se até a história de a tinha "ganho" pelas defesas que fez num jogo com o Benfica em 1958, e que a Académica venceu por 1-0, com um golo do Faia por entre as pernas do Costa Pereira.
Não há por aí quem ajude a estas memórias?
E já agora, lembram-se de o Ramin passear com a namorada à pendura na Lambreta, uma jovem formosa de cabelo ao vento que julgo era conhecida por "bacalhoa".

6:41 da tarde  
Blogger Manuela Curado disse...

Não me recordo da vespa...ou lambreta?!...mas do Ramin e da tal jovem "Bacalhoa".
Seria eu mais nova, pois achava-a já uma mulher.
Seria uma jovem demasiado desempoeirada para época.
Recordo alguns sussurros invejosos...mas a que eu, já naquela altura, não achava muita graça pois fui ensinada a não comentar a vida alheia.

9:10 da tarde  
Blogger aminhapele disse...

Assisti ao tal jogo que Manuel Cruz refere.Ramin,ainda há pouco tempo o afirmei,fez a maior exibição a que assisti até hoje.Lembro-me de um disparo do Palmeiro Antunes,a dois ou três metros,que Ramin defendeu com instinto felino.
Creio que,nesse tempo,Faia(um grande jogador) era o único profissional da Académica.
Também me lembro bem da "bacalhoa"...
Tudo isto a propósito das "memórias do liceu D.João III" que,junto ao poste acima das "belas artes",me avivaram as recordações.
Ficam para mais tarde as histórias do "pulga" e outras...

9:53 da tarde  
Blogger aminhapele disse...

Quanto à "sineta",não sei quem a roubou nem que destino teve.
Lembro-me que,para aí nos meus 13/14 anos,íamos comprar uns cigarros à Cesaltina e,ao fim da tarde,por um caminho secreto atingíamos o campo de jogos do Liceu,onde fumávamos tranquilamente.Num desses fins de tarde,numa brincadeira de rapazes,um foi atirado para cima de um monte de lixo e aleijou-se(isto no campo de jogos do Liceu).Ele aleijou-se quando bateu na sineta,que estava debaixo desse monte de lixo.
Era bem bonita a sineta...

2:02 da manhã  
Anonymous Alvaro Apache disse...

A sineta que existia no jardim interior do Liceu ao nivel do 1ºpiso era tocada pelo continuo Egidio. Desapareceu do local por ai no ano de 1957, pois da minha sala do 1º ano lembro-me de a ver ser tocada do corredor dos alunos do 3º ano.
De ela ter aparecido depois, ja não tenho lembrança.
Tambem ja não me lembro do nome do quiosque que havia ao fundo das escadas que davam para a Cesaltina. Nesse quiosque iamos comprar e "abafar" ja uns macitos de Marlboro, LM, duMaurier e outros tabacos estrangeiros...
A Cesaltina era celebre, mas aquele quiosque era celebre pelos seus fornecimentos.

9:49 da manhã  
Blogger Manuela Curado disse...

Renovei os conhecimentos históricos.
Com a dança dos nomes, reavaliei o grotesco critério dos homens e ri-me, a bom rir, com toda a descrição da vivência liceal masculina.
Ainda hoje estas memórias...me espantam!

REAL E GRACIOSO ENTRETENIMENTO !!!!

7:32 da tarde  

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