XAILES NEGROS, NEGROS LENÇOS
Cruzam-se comigo nas acanhadas ruas, o empedrado que lhes dificulta o andar, a bengala com que apoiam o seu desgastado passo de tanto terem navegado os dias. Pelos ombros, o xaile negro que lhes agasalha as costas dos rigores invernais. E também o lenço na cabeça, de onde sai um olhar vazio e umas farripas de cabelo cor de prata, que o percurso trilhado na vida já vai longo. E o luto. Do marido, filho, filha, irmão ou irmã que já partiram. Preto é a cor que lhes aconchega a alma. De negro se vestiram. De negro se vestirão. O resto da vida.Para trás ficou uma caminhada de trabalhos. No amanho das terras, dos filhos que nasceram pela Graça De Deus, do cuidar dos animais no estábulo, das noites estreladas e frias, dobrada sobre a lareira mexendo o caldo, das mãos geladas nas manhãs sombrias, a lavar roupa no tanque público. E do corpo que há muito não pára de protestar de tanta canseira, os ossos moídos de tanto padecimento.
Um dia virá, em que as pernas dobrarão e os braços repousarão ao longo do corpo, quase inertes e incapazes da labuta diária. Um dia virá, em que os filhos, longe da fronteira ou na grande metrópole lisboeta, discutirão o que fazer da idosa. Um dia virá, em que irão decidir o futuro da mãe, que já se prevê breve. Um dia virá, que aquela mulher de xaile e lenço negros, repousará num banco de um qualquer lar, onde se antecipa a morte. Um dia virá, em que, saudosa dos filhos, os não verá chegar. É a Via Sacra de quem se apresta a largar as amarras da vida. Na bagagem vai um mundo de sabedoria antiquíssima, carimbada com a autenticidade da chancela do Tempo. E, serenamente, com o semblante sulcado pelas rugas que lhe certificam os dramas da existência, adormece serenamente e para sempre, no marasmo dos dias tristes. Os filhos, chamados à pressa, irão acompanhá-la à última morada. De preto se trajam, afinal a cor com que a mãe se vestiu décadas a fio. E de negro desce à terra. Com o rosto cansado, onde há muito se lhe tinha esmorecido o terno sorriso. E tal como o xaile e o lenço negros que a acompanharam uma vida, também o coração se despede de negro. Negro de sofrimento. Negro de solidão.
Quito Pereira


12 Comentários:
Mais um texto com a assinatura Quito Pereira que nos descreve num espelho local, o evoluir da vida de milhões de pessoas por esse mundo fora. Em África, quando morria um preto de cabelos todos brancos, sinal de que era muito velho, dizia-se que uma biblioteca tinha fechado as portas. Um artigo que nos mergulha numa realidade para a qual nem sempre queremos abrir os olhos. Gostei.
Comovida vi a belíssima fotografia e comovida li o teu fantástico texto.
É triste, esta verdade!!!!
Mas a vida de muitas mulheres foi, é, e será...sempre assim.
Parem, amam...e morrem em dor!
Mais um deslumbramento para a alma e para o coração, amigo Quito.
E a foto!
Há mais, Quito?
Estes textos de Quito,de tão belos,causam-me arrepios.
Um abraço.
São textos como este, do Quito...que também me "atraiçoam" a escrita!!! A emoção...
Mais um belo "poema"!!!
Parabéns meu amigo!
José Leitão
Ciclo de Vida, tão penosamente vivido por esta Mulher, demasiado
envolta por xailes e lenços negros... Em suma, não teve direito a alegrias!
Um texto comovente.
Olinda
Lindo e REAL.
Um Abraço.
Tonito.
Mais um pedaço de vidas, vividas lentamente,com sabedoria que nos ultrapassa!
Hoje fomos almoçar à "Casa dos Pobres"da nossa cidade.
Um almoço divinal!
Um cozido à portuguesa absolutamente do "caseirinho"!
E os comensais,muito aconchegados,quentinhos,comungando a refeição,a alegria,a ternura...
Nem todos tiveram lugar,o espaço ainda não permitia mais.
O próximo já será nas novas instalações,em São Martinho.
Uma instituição a acarinhar,basta sermos sócios!
Os pobres não estão só lá longe,também os há à nossa beira!!!
É bem verdade Celeste, a solidariedade é um dos bens mais preciosos, e ás vezes estes casos moram mesmo ao nosso lado. Bom texto.
Muito forte e expressiva a forma como o autor nos toca a emoção e o sentimento no despertar das consciências para esta realidade.
Gostei muito, Quito.
Parabéns!
Pedro Martins
Este comentário foi removido pelo autor.
Mulheres e homens que "cavam a vida inteira e, quando se cansam deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. E ali ficam nuns cemiérios de lívida desilusão, à espera que a lei da terra os transforme em ciprestes e granito."
citação de Miguel Torga.
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