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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Oh Domingos - Um texto de 2009 de Zeca Ferrão


Eh, Domingos! Então andas aí com uma miúda, conta lá, pá!? O Eloi atira, num tom que não aceita réplica. Eu?! Sim, tu, não estejas com esse sorriso, que toda a gente anda a falar nisso. Também, até o Francisco, ali o vizinho do Stokler, até esse arranjou uma miúda, só tu é que não! E prossegue, naquele tom que atrai o Domingos como uma borboleta para a luz: No outro dia, quando estavas comigo em casa da Marquesa a
beber uns copos, bem me pareceu que andavas a esconder alguma.
Se calhar é por isso que tu agora já voltas para a Rua de Angola mais cedo, mal o Silva fecha, às duas da manhã.
Já não gostas de ficar por aí connosco, encostado à parede do café, a ouvir as conversas, e a fumar os teus fenaites, até às três ou quatro da manhã?
E era assim em certas noites, nem sempre de Verão, com o Domingos, à porta do Silva, à nossa beira, enredado em conversas que não entendia. Na maior parte das vezes não percebia patavina, mas parece que o palavreado rotundo e excêntrico, de ideias tão delirantes como efémeras, o fascinava. Até que de vez em quando alguém reparava nele, e talvez para aliviar a tensão das polémicas geradas, o trazia para o calor da
luta com tiradas que não admitiam indiferença, do género: Então ó pá diz que tu e o Carlinhos Jardineiro se entendem bem? O Domingos, encostado no seu canto, uma perna trocada sobre a outra, o Definitivos nos lábios, percebia a provocação mas limitava-se a esboçar um sorriso contrafeito ( o gajo quer conversa!). E naquele tom empastelado que as muitas idas ao Manel e à D. Ema lhe deixavam para o fim do dia, atirava:
Oh cabrão (pausa), eu não sou como tu! Não venhas com essas merdas, olha
que isso é mentira! Mas o provocador insistia, com um olhar matreiro, nem era preciso
levantar os olhos: È verdade, está aí o Zé Leitão, pergunta lá se não lhe disseram o
mesmo? O quê, o Leitão?, O quê!? Ès parvo ou quê?! E virando-se na direcção do
visado: Ó Leitão, disseram-te o quê?
E pronto era o Domingos prontinho para arrancar. Aí estava a sua vez de ser gente,
era o seu papel naquela encenação bizarra, sempre repetida, em certas noites brancas
daquele Bairro. Mesmo do fundo daquela vida penosa e grotesca, o álcool a fazer-
lhe brilhar os olhos e os beiços, agigantava-se. De razão em razão ia estar ali toda a
noite a negar um nada, a desmontar o vazio, até aparecer coisa nenhuma, para defender
a honra da virilidade contestada. O Domingos reaparecia, de repente deixava de ser
apenas o andrajo humano, com as mãos grossas e trémulas a agitar o vazio, passo lento
na perna com a chaga aberta. Os olhos brilhavam, o grito arrancava surdo do fundo do
peito, a dignidade há muito perdida emergia num arremedo grotesco: Olha p´ó bruto, eu
não sou desses, ouvistes! E com o entusiasmo crescente e desesperado, a cena acabava
quase sempre com uma proclamação triunfal, a mão ensaiando uma tentativa vã de
abrir a braguilha: Tá aqui, pá, queres ver!?
Aí um vulto aproximava-se por vezes, passo largo um pouco ondulante, cigarro na
ponta dos dedos, o casaco de cabedal brilhando na penumbra. A voz do Pombalinho,
entre a surpresa e o desagrado clamava com autoridade: Ó Domingos, que merda é esta,
pá, não vez que estes gajos querem é gozar contigo, pá! Manda-os à merda, pá! Olha
que destes todos és tu o único que trabalha, pá!
Chegada a este ponto a comédia efémera atingia o cume e logo arrefecia. Alguns
retardatários passavam, no passeio de fronte do Silva, entre o sorriso e a perplexidade.
Ao longe, o Victor Hugo terminava mais alguma pequena polémica de fim de noite, à
porta do Samambaia.
Num gesto furtivo, havia movimento de cortinas nas janelas do Sr. Aires.

Então, como que dando fim à função, o Eloi rematava, ao mesmo tempo que a caldaça
ressoava no pescoço forte e lustroso: É verdade, pá, estavam a gozar contigo! Toda a
gente sabe que tu és um gajo bestial! Não vês que estás a fazer barulho para nada. Vá lá,
toma lá os vinte cinco tostões de me engraxares há bocado, que te devo. E vê se vais
prá cama, pá! És mesmo um noctívago! E reincidente!
Sou o quê!? Mas a chama já não reactivava, mesmo perante a eventual afronta de mais
aqueles termos, provavelmente insultuosos.
Em vez disso, o sorriso benévolo vinha à face rotunda. Com lentidão o Domingos
varria com um gesto o vazio, encolhia os ombros, puxava com a mão trémula da última
pirisca da noite, e arrancava cambaleante pela Rua A abaixo, a caminho do pardieiro.

Ao Domingos, nosso companheiro e amigo, pelo que hoje seriam provavelmente os
seus 80 anos.

JF

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