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segunda-feira, 30 de março de 2009

FAEX URBIS, LEX ORBIS

João Matias, oriundo de uma família da alta burguesia, dominava a técnica jurídica como poucos. Quando terminou o curso de Direito com alta classificação, foi de imediato convidado para integrar o Gabinete de Estudos do partido que sustentava o governo daquele País. Ainda nos tempos de estudante, filiara-se na organização de juventude desse partido. Participara em todas as actividades de propaganda, marcando sempre presença em comícios, manifestações, jantares de apoio ao líder e distinguindo-se pela sua militância e pelas suas verve e oratória, com que tecia loas aos barões e senadores do seu partido, enquanto achasse que estes estavam colocados em lugares de decisão.
Desde os tempos de escola e depois na faculdade, João Matias repartia o seu tempo entre a actividade partidária e uma férrea dedicação aos estudos. Não lhe sobrou tempo nem para namorar, nem para se divertir com os outros jovens, nem para conhecer a dureza da vida dos trabalhadores, nem a dos pequenos empresários, muito menos a dos desvalidos da sorte...
Seu pai ensinara-o, e ele aprendera bem a lição, que, a quem dirige os destinos da sociedade, cabe a glória e a obrigação de perpetuar a sua estabilidade. Estudando e trabalhando afincadamente para manter a organização que regule e discipline os comportamentos do povo iletrado e incapaz, impedindo a anarquia que subverta a ordem e a paz...

O ministro da Economia mandou-o chamar, fê-lo sentar-se e confidenciou-lhe:
Conheço bem as suas aptidões jurídicas. Como sabemos, todas as leis terão que ser obrigatoriamente genéricas, não podendo conter disposições que possam ser entendidas como destinadas a legalizar qualquer inconfessada intenção de favorecer objectivamente esta ou aquela empresa, este ou aquele projecto.
Em contrapartida, há que acautelar o perigo de a excessiva generalização legalista poder abrir portas a uma chusma de oportunistas que das leis queiram tirar proveito, em prejuízo da rendibilidade das verdadeiras empresas e projectos a que efectivamente queremos que se destinem.
Ora, é este difícil equilíbrio que só juristas muito competentes são capazes de obter na redacção das leis.

O ministro, enfunado na sua superioridade, estendeu-lhe um volumoso dossier, dizendo-lhe que nele tudo estava contido para que ele percebesse o real objectivo da lei que se pretendia elaborar.

E prosseguiu:

Resumidamente o caso é este: Precisamos de fazer um Decreto-Lei que conceda atractivos incentivos fiscais e vultosos subsídios governamentais a empresas que se venham a constituir para implementarem projectos para exploração hoteleira, de classe alta, destinados a atrair turistas estrangeiros. Mas atenção, é preciso que essa lei estabeleça os incentivos apenas às empresas que realizem os seus projectos em zonas costeiras, com acesso restrito ao mar, com baixa densidade populacional, com cotas altimétricas situadas entre os 20 e os 30 metros, livres de arborização mediterrânica, excepto das rasteiras e onde a fauna se restrinja a aves pernaltas.

Esclareceu:
No nosso País só existe uma zona com estas características. Situa-se a 100 Kms a sul da nossa capital e já é propriedade do Sr. Comendador Albino Metelo a quem este governo muitos favores deve.
Como compreende, as condicionantes têm de ser pasmadas na lei de uma forma genérica, segundo os princípios gerais de Direito, e sustentadas por razões plausíveis e inquestionáveis que impeçam as possíveis investidas da oposição.

Passado um mês, o Dr. João Matias entregava o seu trabalho.
O Decreto-Lei foi muito apreciado pelo ministro, que lhe deu um grande elogio. Salvo pequenas correcções entrou em vigor pouco tempo depois.
O Comendador Albino Metelo, que tinha comprado a preços irrisórios, uma extensa área de terreno rústico a uma infinidade de pequenos agricultores quase falidos, já vendeu a peso de ouro o seu terreno a uma empresa sueca que, aliciada pelos enormes incentivos financeiros governamentais decorrentes da lei, ali vai desenvolver um grande projecto hoteleiro.

Rui Felício
30-03-2009

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13 Comentários:

Blogger Manuela Curado disse...

Porque será que tenho a sensação que já ouvi isto em qualquer lado?

Entre o caldo verde e a caldeirada de bacalhau que acabei de fazer para o almoço de amanhã, vinha correndo ao computador na ânsia de saber, o que sairia do teu forno.
Puxa, Rui, a tua caldeirada está bem melhor e bem mais condimentada...
Só que provoca uma grande azia...

8:51 da tarde  
Blogger Rui Felicio disse...

O caso é verídico. Como tantos aliás...
Só os nomes o não são.

Não os posso divulgar, portanto.

Num País onde a honestidade anda por mesas altas, as penalizações não vão para os desonestos mas para quem caia na ratoeira de os identificar...

8:54 da tarde  
Blogger Manuela Curado disse...

E se fosse caso único... a "coisa" já não ía mal.

9:06 da tarde  
Anonymous mariazinha disse...

Então cá vai uma achega do Prof. Medina Carreira:um dos mais capacitados “economistas” portugueses. Sempre que fala, deixa o País a reflectir, estupefacto. Eis a síntese de uma das últimas entrevistas que concedeu.

"Vocês, comunicação social, o que dão é esta conversa de «inflação menos 1 ponto», o «crescimento 0,1 em vez de 0,6»....Se as pessoas soubessem o que é 0,1 de crescimento, que é um café por português de 3 em 3 dias... Portanto andamos a discutir um café de 3 em 3 dias...mas é sem açucar..."

"Eu não sou candidato a nada, e por conseguinte não quero ser popular. Eu não quero é enganar os portugueses. Nem digo mal por prazer, nem quero ser «popularuxo» porque não dependo do aparelho político!"

"Ainda há dias eu estava num supermercado, numa bicha para pagar, e estava uma rapariga de umbigo de fora com umas garrafas, e em vez de multiplicar «6x3=18», contava com os dedos: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9... Isto é ensino...é falta de ensino, é uma treta! É o futuro que está em causa!"

"Quem anda a viver da política para tratar da sua vida, não se pode esperar coisa nenhuma. A causa pública exige entrega e desinteresse."

"Se nós já estamos ultra-endividados, faz algum sentido ir gastar este dinheiro todo em coisas que não são estritamente indispensáveis? P'ra gente ir para o Porto ou para Badajoz mais depressa 20 minutos? Acha que sim? Quer dizer, isto está tudo louco!"

"Eu por mim estou convencido que não se faz nada para pôr a Justiça a funcionar porque a classe política tem medo de ser apanhada na rede da Justiça. É uma desconfiança que eu tenho. E então, quanto mais complicado aquilo fôr..."

"Nós tivemos nos últimos 10-12 anos 4 Primeiros-Ministros:
-Um desapareceu;
-O outro arranjou um melhor emprego em Bruxelas, foi-se embora;
-O outro foi mandado embora pelo Presidente da República;
-E este coitado, anda a ver se consegue chegar ao fim e fazer alguma coisa..."

"O João Cravinho tentou resolver o problema da corrupção em Portugal. Tentou. Foi "exilado" para Londres. O Carrilho também falava um bocado, foi para Paris. O Alegre depois não sei para onde ele irá... Em Portugal quem fala contra a corrupção ou é mandado para um "exílio dourado", ou então é entupido e cercado."

Se aparece aqui uma pessoa para falar verdade, os vossos comentadores dizem «este tipo é chato, é pessimista».... Se vem aqui outro trafulha a dizer umas aldrabices fica tudo satisfeito... Vocês têm que arranjar um programa onde as pessoas venham à vontade, sem estarem a ser pressionadas, sossegadamente dizer aquilo que pensam. E os portugueses se quiserem ouvir, ouvem. E eles vão ouvir, porque no dia em que começarem a ouvir gente séria e que não diz aldrabices, param para ouvir. O Português está farto de ser enganado!
Todos os dias tem a sensação que é enganado

9:19 da tarde  
Blogger olinda Rafael disse...

Porque será que o sr.dr. João Matias aprendeu tão bem as lições
do papá!!!???

E a mensagem do sr. ministro da Economia!!!???

Como gosto muito de Comendadores fiquei muito contente pelo seu chorudo negócio...

Que alto tacho foi oferecido ao Martins?

FAEX URBIS,LEX ORBIS (Rui,traduz!)

olinda

11:13 da tarde  
Blogger olinda Rafael disse...

não é Martins é Matias

o nome


é um pormenor importante

11:15 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Excelente assunto trazido a debate pela mão sabedora do Felício.

Todos nós temos uma posição de desconfiança perante o poder de quem nos governa, na certeza de que muitas outros casos há idênticos ao relatado.
Muitas leis são feitas por encomenda para benefício não expresso de quem se pretende beneficiar.
A corrupção e a desonestidade tomou há muito conta do poder e por isso constatamos as desigualdades existentes.
Ninguém está no poder para servir mas para servir-se.
Quando as leis são encomendadas a reputados gabinetes de advogados, os "buracos na lei" são efectuados para esses mesmos gabinetes safarem os seus clientes em acções futuras.
É engraçado verificar os lugares dourados em que estão muitas das vozes incómodas do partido do poder, aqui ficaram os que não fazem ondas porque nem sabem nadar e estão todos às volta do lago a ver o que podem apanharem.
A resposta a toda esta situação está na força do voto assim saibamos usá-lo.

12:26 da manhã  
Blogger Manuela Curado disse...

O problema está exatamente aí... em quem votar.
Nenhum partido está incólume das aldrabices em que... se e nos... metem para atingir os seus fins.
O melhor é iniciar o nosso trabalho pela base.
Evitar,cada um de nós, fazer aos outros o que não queremos que nos façam.
SERIA UM BELO PRINCÍPIO.

Temos que ter menos conversa e mais obra.

2:39 da manhã  
Blogger Rui Pato disse...

São as tais leis que trazem a fotografia do beneficiário!
Vê-se muito agora e antes, nos concursos públicos, virem publicados os pré-requizitos que, tudo tem que desaguar num candidato à medida...

9:52 da manhã  
Blogger Rui Felicio disse...

Olinda,

Satisfazendo a tua curiosidade...

Tradução literal da expressão latina FAEX URBIS, LEX ORBIS:

A ralé da cidade faz as leis do mundo
......................

As expressões latinas normalmente servem para consubstanciar noções e princípios.
Como tal, traduzidas à letra, normalmente podem prestar-se a interpretações diferentes da intenção com que foram produzidas.

Como é este o caso.

Primeiro que tudo importa adquirir a noção de “ralé”.
Esta designação pode significar classe baixa, escumalha, casta.
No caso vertente, é o último destes sinónimos que a expressão latina pretende exprimir.

Em segundo lugar, o substantivo “cidade” , do latim “civitate”, tem hoje um significado muito diferente do que foi o seu originário. Com efeito, na Antiguidade, “civitate” era o centro físico do poder politico e da administração pública. Era o espaço onde viviam a classe dominante e os seus ajudantes privilegiados.

Por último o vocábulo “mundo”. Sempre significou “tudo o que existe, tudo o que é conhecido”. Porém, nesta expressão latina, deve ter-se em conta o seu contexto. Na Antiguidade, o mundo conhecido era o território onde vivia o povo, a plebe, sob administração superior da “civitate”.

...................

Assim, convertendo-se a tradução literal acima enunciada, o verdadeiro significado da expressão latina FAEX URBIS, LEX ORBIS, nos tempos actuais, é:

O povo sujeita-se às leis feitas pelos poderosos.

Rui Felício

10:18 da manhã  
Blogger Rui Felicio disse...

Como diz o Rui Pato, os Cadernos de Encargos dos concursos públicos, sempre foram cozinhados para encapotadamente beneficiarem alguém amigo. Antes, como agora!

Lembro-me de alguns Gabinetes Técnicos das Câmaras Municipais elaborarem mapas de trabalhos para concursos de empreitadas "a forfait" onde propositadamente descreviam trabalhos de escavação em "rocha dura" quando sabiam que de facto os terrenos eram arenosos e habitualmente designados por "terra branda".

Como a empreitada era "a forfait" o que contava era o preço global final, que naturalmente era calculado pelos "amigos" dos técnicos a quem era passada a informação, a preços muito mais baixos reduzindo substancialmente o preço global final.

Note-se que a diferença de preço entre os dois tipos de escavação pode atingir uma proporção de 1 para 5!

Numa empreitada em que o capitulo "escavações" representava muitas vezes 70 ou 80 por cento da empreitada, veja-se o efeito que a "desinformação" do Caderno de Encargos representava.

E o efeito do "agradecimento" que os técnicos presumivelmente esperavam por parte dos seus "amigos".

11:40 da manhã  
Blogger Isabel disse...

E porque não aparece o comentário que fiz ontem?

Ló Gaspar

3:37 da tarde  
Blogger olinda Rafael disse...

Rui

Como a tua explicação foi oportuna
pois ficar pela tradução à letra era muito redutora.

Olinda

6:43 da tarde  

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