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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Guerra Colonial - Moçambique

Mueda, mil vezes nos meus sonhos
Já tinha ouvido falar de ti, Mueda, homens que lá tinham estado antes, falavam de guerra, de ataques, de morteiradas, de helicópteros, de aviões, de medo, de mortos e de feridos.Mesmo antes de te conhecer já o teu nome me assustava e ao ser mobilizado para Moçambique, logo se apoderou de mim uma ansiedade enorme, será que iríamos para Mueda, talvez não, Moçambique era tão grande que, só com muito azar iríamos lá parar.Imaginava-te a ser constantemente atacada e com homens de armas na mão junto ao arame farpado, a responderem aos tiros dos guerrilheiros da Frelimo.Foi ao chegarmos a Lourenço Marques, ainda no barco que recebemos a notícia de que o nosso batalhão iria para Cabo Delgado e a nossa companhia para Mueda.Logo à entrada fomos recebidos por uma placa nada animadora:
Bem-vindos a Mueda, Terra da Guerra
Aqui trabalha-se, luta-se e morre-se.
Checa é pior que turra.
Mas tu surpreendeste-me Mueda, tu eras um oásis para nós que vínhamos do mato, cansados, com sede, esfomeados, sujos, feridos alguns, e tu a todos recebias com um sorriso nos lábios, um banho, quando havia água, uma cerveja fresca e o teu aldeamento.Às vezes o oásis deixava de o ser, era a Hora Maconde e vinha aí um ataque à morteirada, mas até isso nos sabia bem, para que os aramistas e aqueles Chicos que nunca saíam do aquartelamento soubessem o que era a guerra.Recebeste-me, um rapaz imberbe e amedrontado, mas a pouco e pouco foste-me moldando, ensinaste-me que um homem sozinho não é ninguém, ensinaste-me a amizade sincera, a solidariedade, a união, o espírito de grupo, o espírito de sacrifício, o respeito pelos outros, mas também me mostraste o sofrimento, a morte, a dor e a parte má que há em cada um de nós. Mostraste-me como os homens são capazes dos actos mais heróicos e altruístas, mas também dos actos mais egoístas e cruéis
.Em Mueda fiz coisas que nunca pensei ser capaz de fazer, fiz coisas sem pensar, fiz coisas por medo, por vaidade, mas também fiz outras por amizade, por solidariedade, por amor ao próximo.Em Mueda fui forte, fui fraco, fui valente, tive medo, matei, morri, chorei, ri-me, cantei, praguejei, comi, bebi, fui feliz. Tantas e tantas vezes fui tudo isso no mesmo dia, só tu Mueda para nos transformares assim.Durante dois anos conheci todos os teus recantos, o Aldeamento, o AM, o fundo da pista, a messe de Sargentos, a messe de Oficiais, a messe do Batalhão, a caserna da Companhia, o Banco, a Engenharia, a Artilharia, o Pelotão de Morteiros, a Companhia de Transportes, o Esquadrão de Cavalaria, o campo de futebol, os postos de sentinela, as valas, os abrigos, os Filtros, as Águas, as tuas cantinas, o China, o Santos, o Serra, a Sara e até o Hospital e o Cemitério. Em Mueda assisti ao mais bonito pôr -do- Sol que vi até hoje, lá longe no horizonte, por sobre o Vale de Miteda, uma enorme bola de fogo a fugir e a esconder-se do outro lado da Terra, e a noite a cair rapidamente sobre o Planalto dos Macondes.Também aí aprendi frases que não conhecia: checa é pior que turra, não há psicola, vai para o mato malandro ou fazer máquina.
Já sonhei contigo mil vezes, Mueda, já contei tantas histórias sobre ti e ainda tenho tantas para contar. Como eu, centenas, milhares de homens têm saudades de ti, contam histórias e sonham contigo. Sonham com o teu cacimbo de madrugada, com as colunas a sair para a picada ainda noite escura, com as tuas manhãs enevoadas. Acordam de noite, ouvindo as saídas dos morteiros, o ruído dos helicópteros ou o rebentar de uma mina.
Que fascínio tinhas tu Mueda, que mistérios encerravas, para que homens que aí enfrentaram a morte, ainda hoje, passados tantos anos, falem de ti com tanta saudade, com tanto entusiasmo, com tanto carinho.
Tuas histórias são contadas à lareira, nos cafés, nas tabernas das aldeias, nos restaurantes mais finos das grandes cidades, todos os dias és falada por tantos homens que por lá passaram e nunca mais te esqueceram, o teu céu, as tuas estrelas, o teu amanhecer, os teus dias enormes, os teus ruídos, as tuas ruas esburacadas, as tuas amizades com um copo ao lado, tudo isso está guardado na nossa memória como um tesouro, que de vez em quando visitamos para matar saudades. Saudades enormes Mueda, da chegada do correio, do içar da bandeira, duma visita ao aldeamento, dum salto até ao AM para ver chegar os aviões ou simplesmente de uma conversa noite dentro com os amigos, sem sabermos se seria a última.E que dizer de uma noite passada com um copo na mão, uma guitarra a trinar e alguém com melhor voz a cantar fados e cantigas da nossa terra, até que já bem noite dentro todos nos sentíamos com voz e coragem para cantar as canções do Cancioneiro do Niassa ou o Fado de Mueda.
Também havia dias bem tristes, quando os helicópteros traziam das picadas ou do mato feridos ou mortos, alturas em que corríamos até ao Hospital, sempre na esperança egoísta de que entre eles não estivessem elementos da nossa companhia. Nessa noite não havia copos, nem cartas para casa, nem sequer conversas, o silêncio tomava conta das flats e das casernas, e cada um sozinho, com os seus pensamentos, tentava resistir o melhor que podia.
Voltaremos um dia, Mueda, agora já não de armas na mão, mas talvez com livros, brinquedos e comida para as crianças, medicamentos para os velhos e um abraço fraterno para todos.
Era assim que deveríamos ter chegado aí, há dezenas de anos, mas não nos deixaram. Talvez agora possamos à noite ver as estrelas em silêncio e sem o perigo de um ataque à morteirada, ou talvez possamos sair pela picada fora a caminho das Águas, apreciando em segurança a paisagem, linda, do Vale de Miteda.Entretanto, vou-te visitando nos meus sonhos, vou falando de ti nos almoços da Companhia ou vou recordando histórias com aqueles, que como eu, te recordam com saudade.Outras vezes vou vendo algumas fotografias que guardo com carinho e orgulho, e que já me têm dado forças em momentos mais complicados, ao olhar para elas e sentir novamente ao meu lado aqueles velhos companheiros de tantas e tantas lutas.
Foste tu Mueda que me ensinaste a ser, o homem que hoje sou, transformaste toda a minha vida, tenho a certeza que parte do melhor que há em mim foi forjado aí, até por isso tu és especial.
Adeus, até um dia, Mueda dos meus sonhos.



publicada por António Silvestre

Etiquetas: Guerra Colonial, Moçambique, Mueda



in "Cacimbo"
de Manuel Bastos

8 Comentários:

Blogger Manuela Curado disse...

Fascinante.
Sei que muitos irão ler este belíssimo texto.
Sei, também, que muitos o não comentarão, por preguiça insensibilidade, ou falta de coragem.
Mas, ninguém...acredito, deixará de ser marcado por tão profunda leitura.
Gente de alma limpa, até no teatro mais obsesceno consegue viver lindas estórias de amor.
Grata por nos teres trazido este pedaço de vida, exemplo para todos nós.
LINDO

9:20 da manhã  
Blogger MAC disse...

António Silvestre,

Quero dar-lhe os Parabéns, por certo não precisa deles porque incentivos para escrever e muito bem, tem-nos, mas porque achei o seu texto dos mais elucidativos e bonitos dos que li até hoje no Cavalinho.
Confesso-lhe que o li “arrepiada” no bom sentido da palavra, deixe-me dizer-lhe, é a sensibilidade quando o que leio me transporta para dentro da acção e imagino o cenário “ipsis verbis” do descrito.
O seu testemunho por terras Moçambicanas, país que também me albergou por uns anos, é a imagem mais conseguida e verídica que se possa dar a conhecer.
O pôr do sol, sem dúvida que jamais o esquecerá, como jamais o esquecerei também, quando o astro rei lentamente se vai escondendo na linha do horizonte enchendo de raios sangrentos as cálidas águas do Indico.
Fala-me do pôr do sol e do nascer do dia?
Você que viveu no mato, poderá testemunhar, melhor do que ninguém, o que é o Paraíso na terra quando não se ouvem tiros de morteiro, cortando o silêncio da madrugada, afugentando a passarada multicor, abafando os seus chilreios musicais, acordando-nos para um novo dia, nem os cheiros a terra molhada misturados com o capim e plantas exóticas que respiramos com ardor como se fosse o último.
Muito mais haveria que contar, por isso não nos deixe de alimentar com as suas aventuras, ter-me-á uma assídua leitora, eis uma simples maneira de trazer e viver no presente os bons e infelizmente “alguns maus” momentos do passado. Mas vale sempre a pena recordá-los e vivê-los sempre.
Bem haja.

Mariazinha da Silveira

10:29 da manhã  
Blogger Manuela Curado disse...

OBSCENO.

10:49 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Olá Mariazinha da Silveira!
SE ainda não comprou...aconselho-a a adquirir "Cacimbados - A Vida por um fio" do Manuel Bastos,gravemente ferido em combate e que pertenceu à Companhia de Artilharia comandada pelo Capitão António Silvestre!
São testemunhos, tal como o que acaba de ler, que como alguém já classificou: - Isto não é prosa - é POESIA!
Também testemunhei esse por-do-sol...(unico no Mundo!!!)que só existia em Moçambique...bem lá no Planalto dos Macondes!!!!

Jose Leitao

11:59 da manhã  
Blogger Chico Torreira disse...

Mais um artigo do Manuel Bastos, muito bem escrito como já nos habituou, com uma exposição de factos e ditos que nos ilucida o que foi a Sua vivência em Mueda, na Sua época. Houve evolução ao longo dos anos pois no meu tempo um banco comercial era impensável. Havia o edifício da Administraçao, os correios, as cantinas do Ladrão e do Chinês, falado no artigo. Os helicópteros também não existiam e para se salvar os rapazinhos do exército, tiveram várias vezes que cortar árvores no mato para que os nossos pilotos aterrassem nesses terrenos acidentados com o DO27, a desviarem-se de partes de árvores pois as raízes com o resto do tronco ficavam. Não havia tempo para mais. Mais, de noite era proibido fazer salvamentos. Perder-se um avião era "muito caro". As pistas eram iluminadas com candeias pois a electricidade na pista era um luxo e por isso não havia. Para que superiormente não notassem os gasto do combustível das candeias, punham-se geep’s ao lado das pistas com as luzes acesas, ajudados com as luzes dos projectores das guaritas, que tudo utilizado de certa forma permitiam ao DO27 de descolar e aterrar. Pedia-se ao exército que fizessem o mesmo no seu local. Sempre que se obtinham estas condições, nunca ficou ninguém por salvar, se bem que os salvamentos fôssem declarados como feitos de dia.

A minha homenagem ao Tenente Leitão que muitas vezes sem pendura e com cara de "estoirado", os poucos cabelos que tinha, molhados a caírem-Lhe ao lado da testa, as costas curvadas pelo cansaço que mesmo muito novito se notava em certos momentos derivado aos inúmero salvamentos que chegava a fazer num só dia em terrenos nem sempre fáceis, sempre pronto a partir de novo. Tomou isso como uma cruz e não fazia outra coisa. Se ainda pertence aos nossos, o meu pensamento para Ele.

Como nós nem medíamos os perigos derivado à forma como vivíamos a nossa juventude, levávamos tudo para o lado positivo. Estou convencido que se voltasse a essa época, diria que uma placa de boas vindas em madeira toscamente pregada numa árvore, que até a tenho no meu stock actual de fotografias, era um luxo...

Não esqueçamos que do lado contrário nem ambulâncias tinham e muitas vezes andavam lá porque eram apanhados no mato e posteriormente "politizados", como me foi explicado pelo único prisioneiro com quem conversei e convivi, para depois serem enviados contra nós. A tal ponto que esse prisioneiro, dormia nas camaratas da Polícia Aérea pois não tinhamos prisões, passeava-se à vontade dentro do AM e como lhe tinham dito que não podia passar os portões, nunca tentou fugir. Para passar o tempo, conversava connosco. Esta até parece do falecido Raúl Solnado, mas aconteceu.

A esta forma de ver a guerra sempre dos dois lados com todos os seus problemas humanos colaterais altamente virado para o sofrimento de milhares de famílias, aqui fica a minha homenagem à minha manita, Maria Isabel, que vendo o caminho que eu estava a tomar em relação à minha ida para a FAP, sem me dizer nada e com uma simples dedicatória, me ofereceu o livo "Os Desenraizados, de Erich Maria Remarque". A Ti, que me ensinaste a ver a vida de uma forma muito mais humana, um bem hajas.

Também não posso esquecer a malta da FAP que nesse momento aí coabitávamos, começou com uns tantos gatos pingados como se costuma dizer e quando parti pela última vez já eramos uns sessenta, a forma fraterna como nos dávamos desde o comandante ao soldado. Nunca me lembro de ouvir dar uma ordem, conversava-se e tudo ficava resolvido. Era a tal ponto contagiante, que o Coronel Maçanita do exército, comandante da região norte, que tratava os seus militares com um militarismo imcompreensível num local daqueles, a nós esticava-nos a mão e ficava a conversar connosco.

Se houve milhares de mortos, a proporção numa guerra ronda oito vezes mais os feridos. Sem comentários.

Mueda que o Bastos tão bem descreve de tal forma que ficamos agarrados ao seus artigos até ao fim, no mesmo dia podia haver o bom, o mau e o feio mas… viverá connosco até à Apoteose final como Ele tão bem referiu.

Chico

4:32 da tarde  
Blogger celeste maria disse...

Muito tocante.
Um siêncio respeitoso será o meu melhor comentário.

5:18 da tarde  
Anonymous JOAQUIM DIAS disse...

MUEDA EU ESTIVE BEM PRÓXIMO EM NANCATARI.
NESTE MOMENTO NÃO VOU DIZER NADA SOBRE O ASSUNTO, POIS APESAR DE PASSAREM MUITOS ANOS É PRECISO MUITA REFLEXÃO, POR ISSO ACHO QUE O ASSUNTO MERECE SILÊNCIO EM MEMÓRIA DOS COMBATENTES QUE FORAM MORTOS E FERIDOS QUER FISICAMENTE COMO MENTALMENTE NESSA MALDITA GUERRA ESTUPIDA.
SERÁ QUE VALEU A PENA? EU TENHO A CERTEZA QUE NÃO.
ABRAÇOS A TODOS OS COMBATENTES E SUAS FAMILIAS.
FURR.MILICIANO DIAS C.CAÇ.4153
N.MEC.002805/73
.

5:21 da tarde  
Blogger Diamantino Santos disse...

Mueda! Por lá fui parar, depois de 14 anos vividos em Coimbra. E, logo ali deparo com o Dr. João André Moreno, que eu conhecia da Casa de Saúde de Santa Filomena, onde ele era anestesista e eu empregado de escritório. Fui para lá, miliciano-aramista, portanto não fui para as patrulhas do mato, mas estive debaixo de fogo de morteiro em Agosto de 1967. Mas vi o sofrimento dos que regressavam dessas patrulhas, dos feridos que "desaguavam" no Destacamento Sanitário, alguns deles do meu Batalhão. Vi morrer um soldado dentro do quartel, com um tiro acidental dum camarada e amigo de infância e que, ainda hoje, lá está sepultado no cemitério de Mueda. Dramas que não esquecem, numa terra que nunca foi realmente nossa.
O artigo é excelente e fez-me recuar 44 anos e pensar no amor-ódio que me desperta Mueda. Nesse tempo já se cantava o Fado de Mueda. E fez-me recordar coisas que eu já esquecera. A beleza do por do sol, que fotografei a cores em foto publicada no site do BC1916. Hoje, resta-nos este desabafo e a amizade cimentada ano a ano nos encontros anuais dos antigos camaradas, no abraço fraterno que trocamos, nas estórias acontecidas, nos sorrisos e na esperança de novo reencontro.
A minha solidariedade a todos os que por lá passaram e sofreram.

10:12 da tarde  

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