XAILES NEGROS, NEGROS LENÇOS

Para trás ficou uma caminhada de trabalhos. No amanho das terras, dos filhos que nasceram pela Graça De Deus, do cuidar dos animais no estábulo, das noites estreladas e frias, dobrada sobre a lareira mexendo o caldo, das mãos geladas nas manhãs sombrias, a lavar roupa no tanque público. E do corpo que há muito não pára de protestar de tanta canseira, os ossos moídos de tanto padecimento.
Um dia virá, em que as pernas dobrarão e os braços repousarão ao longo do corpo, quase inertes e incapazes da labuta diária. Um dia virá, em que os filhos, longe da fronteira ou na grande metrópole lisboeta, discutirão o que fazer da idosa. Um dia virá, em que irão decidir o futuro da mãe, que já se prevê breve. Um dia virá, que aquela mulher de xaile e lenço negros, repousará num banco de um qualquer lar, onde se antecipa a morte. Um dia virá, em que, saudosa dos filhos, os não verá chegar. É a Via Sacra de quem se apresta a largar as amarras da vida. Na bagagem vai um mundo de sabedoria antiquíssima, carimbada com a autenticidade da chancela do Tempo. E, serenamente, com o semblante sulcado pelas rugas que lhe certificam os dramas da existência, adormece serenamente e para sempre, no marasmo dos dias tristes. Os filhos, chamados à pressa, irão acompanhá-la à última morada. De preto se trajam, afinal a cor com que a mãe se vestiu décadas a fio. E de negro desce à terra. Com o rosto cansado, onde há muito se lhe tinha esmorecido o terno sorriso. E tal como o xaile e o lenço negros que a acompanharam uma vida, também o coração se despede de negro. Negro de sofrimento. Negro de solidão.
Quito Pereira
12 Comentários:
Mais um texto com a assinatura Quito Pereira que nos descreve num espelho local, o evoluir da vida de milhões de pessoas por esse mundo fora. Em África, quando morria um preto de cabelos todos brancos, sinal de que era muito velho, dizia-se que uma biblioteca tinha fechado as portas. Um artigo que nos mergulha numa realidade para a qual nem sempre queremos abrir os olhos. Gostei.
Comovida vi a belíssima fotografia e comovida li o teu fantástico texto.
É triste, esta verdade!!!!
Mas a vida de muitas mulheres foi, é, e será...sempre assim.
Parem, amam...e morrem em dor!
Mais um deslumbramento para a alma e para o coração, amigo Quito.
E a foto!
Há mais, Quito?
Estes textos de Quito,de tão belos,causam-me arrepios.
Um abraço.
São textos como este, do Quito...que também me "atraiçoam" a escrita!!! A emoção...
Mais um belo "poema"!!!
Parabéns meu amigo!
José Leitão
Ciclo de Vida, tão penosamente vivido por esta Mulher, demasiado
envolta por xailes e lenços negros... Em suma, não teve direito a alegrias!
Um texto comovente.
Olinda
Lindo e REAL.
Um Abraço.
Tonito.
Mais um pedaço de vidas, vividas lentamente,com sabedoria que nos ultrapassa!
Hoje fomos almoçar à "Casa dos Pobres"da nossa cidade.
Um almoço divinal!
Um cozido à portuguesa absolutamente do "caseirinho"!
E os comensais,muito aconchegados,quentinhos,comungando a refeição,a alegria,a ternura...
Nem todos tiveram lugar,o espaço ainda não permitia mais.
O próximo já será nas novas instalações,em São Martinho.
Uma instituição a acarinhar,basta sermos sócios!
Os pobres não estão só lá longe,também os há à nossa beira!!!
É bem verdade Celeste, a solidariedade é um dos bens mais preciosos, e ás vezes estes casos moram mesmo ao nosso lado. Bom texto.
Muito forte e expressiva a forma como o autor nos toca a emoção e o sentimento no despertar das consciências para esta realidade.
Gostei muito, Quito.
Parabéns!
Pedro Martins
Este comentário foi removido pelo autor.
Mulheres e homens que "cavam a vida inteira e, quando se cansam deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. E ali ficam nuns cemiérios de lívida desilusão, à espera que a lei da terra os transforme em ciprestes e granito."
citação de Miguel Torga.
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