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quarta-feira, 24 de março de 2010

SONHOS PERDIDOS

Quarta-feira, todas as quartas-feiras, aterra-me em cima da secretária o “Jornal do Fundão”. É o carteiro - o Senhor Hilário – que o entrega, juntamente com o expediente do dia. Depois, encontramo-nos no “Portas da Serra”. Entre dois dedos de conversa e uma bica, cada um gira ao seu destino. É assim a vida na aldeia. Uma pequena comunidade, onde todos se conhecem. Vem o Pereira Sardinheiro, com a sua carrinha com instalação sonora, anunciando peixe “fresco”. A Dona Maria, que atravessa a rua e nos traz um pão quente, acabado de sair do forno a lenha. O Paulino, com a sua farda branca, distribuindo o pão e os bolos da Padaria do Salgueiro que laborou toda a noite. E vem o Mário, oferecer os seus préstimos para rapar as ervas em frente da farmácia, à espera da recompensa apetecida. São os cigarros que lhe aquecem a alma. E é o copito que vai bebendo, que substitui o bálsamo que lhe alivia a vida. Às sete badaladas da tarde, no torreão da igreja, são horas jantar. Passa, então, a carrinha do lar. Várias cabeças emergem das janelas, e o Bartolomeu, ao volante, inicia a “via-sacra”, distribuindo os idosos pelas suas casas. Às oito, está tudo na cama, e aldeia veste-se com um manto de silêncio. Para trás, ficam vidas sofridas. Vidas de muitos que regressaram, depois de uma longa caminhada além fronteiras. Dou comigo, a meditar sobre a nova realidade que o “Jornal do Fundão” trás hoje à estampa: os novos emigrantes. Nestas zonas do Interior de Portugal, rarefeitas de população, esta realidade é mais visível. Longe do turbilhão das grandes cidades, é aqui que mais se sente o travo amargo da angústia. A Beira Interior, regista já, percentagem de êxodo semelhante aos anos sessenta. Mas no universo do nosso país, estima-se em quinze mil os portugueses que atravessam, anualmente, a fronteira rumo a Espanha. E muitos dos que regressavam a Portugal, ao Sábado e Domingo, deixaram de o fazer, preferindo a integração na comunidade espanhola. Haverá, porém, cerca de trinta mil portugueses a viver em condição precária, no país vizinho. Angola, Inglaterra e França são também destinos apetecidos. A pacificação em Angola e novas oportunidades de realização pessoal, fazem daquele destino uma nova realidade. Também em terras de Sua Majestade – a Inglaterra - vivem cerca de quatrocentos mil compatriotas. A França, tem um papel relevante no acolhimento dos portugueses. É o nosso parceiro eterno da diáspora. Parece que se arranja sempre trabalho para mais um português – diz o articulista. E são cada vez mais jovens, os nossos emigrantes, à procura dos primeiros euros, que lhes permitam uma vida mais confortável e digna. E esta é a realidade com que me confronto todos os dias, neste meu cirandar pela aldeia. A daqueles que partiram na perspectiva de uma vida melhor e que visitam as suas raízes apenas no mês de Agosto. E os que regressaram já velhos, desiludidos e cansados, e que, da carrinha do Bartolomeu, apenas vêm cumprir-se o seu triste destino. De um país que é o seu, mas que os não abraçou na primavera da sua juventude, e só lhes deu guarida no Inverno das suas existências. E de uma vida repleta de canseiras, sacrifícios, saudades e martírios. Uma lúgubre sinfonia de desencantos. E de sonhos perdidos.
Quito Pereira

6 Comentários:

Blogger DOM RAFAEL O CASTELÃO disse...

O Carteiro
Conjunto António Mafra
Composição: António Mafra
Manhã cedo segue a marcha
sempre na mesma cadência
e lá vai de caixa em caixa
metendo a correspondência
para uns são alegrias
para outros tristezas são
o carteiro não tem culpa
é a sua profissão

Chegou o carteiro
das nove p´ras dez
a vizinha do lado
de roupão enfiado
chegou-se à janela
em bicos de pés
e logo gritou:
"Traz carta p´ra mim?"
e o carteiro que é gago
espera um bocado
e responde-lhe:
"Não não não não não
não não não trago nada
só só só só só
só trago o pacote
da sua criada"

E o sr. Roque desespera
pelo vale que nunca vem
vai sentindo infelizmente
como faz falta o vintém
para uns são alegrias
para outros tristezas são
o carteiro não tem culpa
é a sua profissão

Chegou o carteiro
das nove p´ras dez
a vizinha do lado
de roupão enfiado
chegou-se à janela
em bicos de pés
e logo gritou:
"Traz carta p´ra mim?"
e o carteiro que é gago
espera um bocado
e responde-lhe:
"Não não não não não
não não não trago nada
só só só só só
só trago o pacote
da sua criada"

Quando o carteiro se atrasa
os protestos são em coro
as garotas ansiosas
por notícias do namoro
para umas são alegrias
para outras tristezas são
o carteiro não tem culpa
é a sua profissão

Chegou o carteiro
das nove p´ras dez
a vizinha do lado
de roupão enfiado
chegou-se à janela
em bicos de pés
e logo gritou:
"Traz carta p´ra mim?"
e o carteiro que é gago
espera um bocado
e responde-lhe:
"Não não não não não
não não não trago nada
só só só só só
só trago o pacote
da sua criada"

12:46 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

"Sonhos Perdidos"...
Um "Miguel Torga"...achado!
Bela escrita meu amigo!
Um abraço
Jose Leitao

3:18 da tarde  
Anonymous Titá disse...

Leio sempre com agrado os retratos que fazes dessas gentes da "tua aldeia". É como se estivesse também a vê-los. Estes foram um ponto de partida para uma outra reflexão: os novos emigrantes. Uma realidade um bocadinho dolorosa e difícil de resolver. A curto prazo, pelo menos!
Vou esperando por mais notícias!

5:55 da tarde  
Anonymous olinda disse...

O olhar de um beirão( por empréstimo) que conhece
os problemas e as alegrias dos reais beirões como as palmas das suas mãos...

Olinda

7:03 da tarde  
Blogger Chico Torreira disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

2:54 da tarde  
Blogger Chico Torreira disse...

Como gosto de saborear o que o Quito escreve, andei de dia para dia a ver o blog de forma rápida e sempre a dizer para comigo "vou ler este artigo mas com tempo". A passagem da vida na aldeia tão bem desenhada em poucas palavras pelo Quito, trás-nos à mente o desfilar dos filmes das aldeias que conhecemos. Ao ler-se a segunda parte deste artigo, fica-se a saber o fim do típico emigrante. É certo que hoje os portugueses emigram mais para a Europa e para aqui até já é raro, derivado às condições que o Canada passou a impôr mas ainda cá vamos andando uns poucos pois uns regressam, outros partiram, os netos e seguintes cada vês mais canadianos. O emigrante quando deixa o seu cantinho natal, fá-lo sempre com a ideia de voltar mais tarde. Entretanto os filhos crescem, tiram os seus curso na terra para onde foram levados, trabalham, aí criam raízes e depois abandoná-los para a nossa mentalidade é práticamente impossível. Quando à distância é grande como os que se radicaram além-mar, deixar os filhos para trás é como se fôsse um "até sempre...", em vida. Quanto às dificuldades sim mas... quantos dos que nunca saíram do seu país, não se sentem mais do que emigrantes nas suas próprias terras e que no seu intimo não são mais do que imigrantes! – Às vezes dá para pensar. Mais um artigo do Quito para a minha coleção.

Chico

3:04 da tarde  

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