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segunda-feira, 26 de abril de 2010

GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS

Sozinho, vou percorrendo ao volante do meu carro, os cerca de cento e quarenta quilómetros que separam as Grutas de Santo António, em Mira de Aire, da cidade de Castelo Branco. Venho absorto, guiando quase maquinalmente, afundado nos meus pensamentos. Para trás, deixei um grupo de camaradas de armas que não se viam há cerca de quarenta anos. Alguns, até há mais. Os “Gatos Pretos”, eram uma Companhia de rendição individual. Não formaram batalhão em Portugal, daí, que os militares daquela Unidade foram entrando e saindo de Canjadude, consoante começavam e terminavam as suas missões. Espaçados por mais de uma década, não poderia haver, talvez, a ligação umbilical de pertencer, de raiz, a um Batalhão. Para terem uma ideia mais concreta, basta dizer que enquando alguns já por lá comiam o pão que o diabo amassou, ainda eu andava de livros debaixo do braço a correr para o antigo liceu D. João III. Sempre pertenci a outra família militar – a companhia de Cavalaria 3 4O6 – que, vai para mais de trinta anos, se junta para confraternizar. Há muito que deixámos de falar de guerra. Falamos agora das nossas expectativas, da preocupação com o futuro dos filhos e alguns, embevecidos, das traquinices dos netos. Mas, ontem, foi diferente. Depois de uma desconfiança inicial - em que, de dedo em riste, perguntavam uns aos outros “..tu és o …? ” – a cafeteira das emoções começou a levantar fervura. Porque a esmagadora maioria deles – o meu caso era esporádico – nunca conheceram outra Companhia que não fosse “Os Gatos Pretos”. Neste caso, “Gatos Brancos”, se olharmos as cabeleiras da maioria daqueles amigos. Sinal da marcha impiedosa do Tempo, e das agruras estampadas no rosto de muitos deles e de cada um. Depois vinham os abraços, e uma necessidade absoluta de falar de guerra. Foram quarenta anos de silêncios e aquele era o momento emocionante de falarem uns com os outros daquela época nebulosa das suas vidas. De fazerem a sua catarse colectiva. De exorcizar os demónios que ainda lhes atormentam o espírito tantas décadas depois. “ ...Óh Pereira, lembraste quando eu e o Melgueira estávamos a pescar e começou um enorme barulho e ele disse que eram trovões e afinal eram morteiradas? ”. Felizmente, eu não me lembrava.”…Óh Pereira, lembras-te quando uma cobra entrou no abrigo, de cabeça no ar, enfurecida, para nos atacar? ”. Felizmente, eu também não me lembrava. “Óh Pereira, lembras-te quando estavas a gravar uma cassete para os teus pais com a tua vóz e rebentou um ataque e tu te atiraste para debaixo da cama?”. Desgraçadamente, dessa, eu já me lembrava. E foi assim por toda a tarde. Tinham tanta “fome” de falar, que por vezes abandonavam as mesas e os pratos não eram servidos, pois alguns deles, nem se lembravam dessa pequena particularidade que era um bem elaborado almoço. E foi assim, que ao declinar da tarde, me despedi do grupo que ainda lá ficou. Ao volante do carro, pensei em Vos transmitir o que foi aquele dia. Quis um título para o texto. Algo que sintetizasse aquelas horas. Aquele carrocel de emoções que esteve parado quarenta anos e que agora começa a vencer a inércia. Porque já me apercebi, que a festa vai continuar. Mas, naquele dia, deambulando entre as mesas, vi risos, abraços e gargalhadas. E, também, algumas lágrimas furtivas. Um amigo de Sines disse-me, com os olhos a brilhar, que estava a viver um sonho. Lembrei-me então do escritor João de Melo, e do seu livro públicado nos fins da década de oitenta “Gente feliz com lágrimas”. Pedi-lhe o título emprestado, para enfeitar este meu monólogo, que partilho agora com alguns de Vós. Foi, de facto, um dia importante e inesquecível, vivido no seio de gente feliz. Sim, de gente feliz. De gente feliz com lágrimas.
Quito Pereira

7 Comentários:

Blogger DOM RAFAEL O CASTELÃO disse...

Valeu a pena este teu reecontro passados tantos anos, não só e principalmente por poderes rever esses camaradas de armas, de relembrares alguns dos episódios então vividos, mas também porque este reecontro permitiu que mais uma vez nos proporcionasses um magnífico têxto,carregado de emoções.
Um têxto à Quito!
Um abraço!

3:53 da tarde  
Blogger quito disse...

Rafael
Como o almoço era pesado, a gerência substituíu a sopa de feijão por uma sopa mais leve: e então foi-nos servida SOPA DE PEDRA !!!

4:26 da tarde  
Blogger Maria Helena Morgado disse...

Uma criança dizia dizia
Quando for grande não vou combater...
Parece que também fazemos parte do filme!
Forma simples e bonita de exprimir as emoções!
Parabéns!

4:27 da tarde  
Blogger celeste maria disse...

Não terás comido a pedra da sopa?

Ficaste a escrever o monólogo até fazeres a digestão?

Mas as emoções demoram a digerir...

5:41 da tarde  
Blogger Manuela Curado disse...

Mais uma vez te li com todo o agrado.
Agradeço as tuas estórias, pois com elas, os meus laços contigo foram estreitando.
Já não consigo desatar o nó.

5:42 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

©João Carvalho (2006)

A história que eu vou contar,
Já há muito aconteceu,
Gatos pretos em acção,
Na grande operação,
Lacoste em Burmeleu.

A malt' ia pela mata,
Ainda não viar nada,
Mas por mal dos meus tormentos,
Com fortes rebentamentos,
Começou a emboscada.

Logo a malta reagiu,
No meio da confusão,
Atrás deles e a correr,
A gritar e a dizer
Gato preto agarra à mão.

Perante a admiração geral,
No meio da algazarra,
Enquanto os turras fugiam,
Os nossos os perseguiam,
A gritar Agarra, agarra!.

então já noitinha,
Quando a tropa instalou,
P'ra nosso contentamento,
Munições e armamento,
Foi o ronco que ficou.


____________

Notas de L.G.

8:40 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Comments:
Como ex-Furriel Miliciano dos Gatos Pretos - Canjadude, envio-lhe um abraço. Estive lá em 1972 e 1973 (Agosto).
Estava no quartel na noite do ataque dos foguetões. O meu abrigo era junto ao embondeiro perto da casa de banho. O Comandante de Companhia chamava-se Gil de Figueiredo Barros e reside agora em Braga.
Um abraço
Eurico Pereira

Nota: o que leio na Net!!!!
Abraco ao Quito!

8:46 da tarde  

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