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quarta-feira, 30 de junho de 2010

A PÁTRIA PARDA

Estátua jazente de Luís Vaz de Camões
O Dia De Portugal, comemorado a 10 de Junho em Faro, foi, para mim, um desfiar de recordações negras. Disse-vos um dia que já estava curado de uma época sombria da minha vida, quando me vi com uma mala na mão, partir para um destino incerto, levado no ventre dum barco que mais parecia adaptado a carregar gado. As palavras são cruas. Mas foi assim. Também Vos disse que já estou refeito da afronta. E estou. Mas as palavras do Professor António Barreto, responsável pela organização das comemorações, tiveram em mim algum impacto. Fez um discurso notável. De uma forma simples, alinhou as palavras como elas deviam ser ditas. Às palavras, juntou uma pitada da sua larga craveira intelectual, e a prosa saiu escorreita. Com coragem, meteu no mesmo saco, todos os combatentes de Portugal, independentemente das razões que poderiam assistir, ou não, ao País. Porque o soldado é sempre vítima. Ninguém lhe pede opinião. Parte, deixando para trás a sua terra, a família, e os amigos. E, na maioria do casos, voltam. Muitos, lambem as feridas de uma época trágica das suas vidas. De espingarda na mão, calcorrearam matas, perseguindo homens como eles, com o intuito de os aniquilar. É o Homem feito fera irracional, perseguindo um desígnio que nem sequer percebe. Outros, porém, não conseguiram ultrapassar a barreira, e baquearam perante a tragédia apocalíptica que lhes varreu a existência. Chegaram aparentemente bem. Mas é no silêncio das suas casas, que os seus familiares se apercebem que o drama da guerra não se extinguiu. Partiram, um dia, soldados de carne e osso. Voltaram soldadinhos de cartão. A violência do teatro de guerra, toldou-lhes a Razão e aniquilou-lhes a Alma. São hoje seres dependentes, que vagueiam sem destino, entregues aos cuidados das famílias que os tratam com amor. E os amigos, condoídos com a desgraça. Outros, pararam no tempo. E foi triste vê-los desfilar na parada militar de 10 de Junho, de boina na cabeça, de onde saíam umas farripas ralas de cabelo branco, marchando de braços hirtos e em passo de ganso, ou até em cadeira de rodas, numa triste viagem a um passado já remoto, que enlutou muitos lares portugueses. A grandeza de um País, não se mede pelo aparato de paradas militares. Muito menos a dignidade. Nem os soldados que combateram nas três frentes de guerra, necessitam de exaltantes manifestações bélicas, para se afirmarem como ex-soldados de Portugal. Nem precisam da “boa vontade” de uns e da “tolerância” de outros. Todos os anos, de Norte a Sul do território nacional, combatentes que viveram no mesmo campo de batalha, confraternizam, levando consigo as famílias. E é ali, que se fala do passado e , sobretudo, da partilha: o cantil quase sem água que se dividia com o companheiro do lado nas missões esgotantes; o comprimido que já não havia, mas que se tinha um de reserva lá no fundo da gaveta; o ombro amigo onde se pousava a cabeça, quando se pressentia a saudade da família e do som metálico do badalar do sino lá da aldeia. Numa palavra, a entreajuda entre todos, num momento difícil da vida. Quanto a Portugal, renasce e celebra-se todos os dias. Seja pela Lírica de Camões, pelos Heterónimos de Pessoa, pela prosa Realista de Eça, pelo rincão beirão onde Namora bebeu momentos brilhantes da sua escrita, pela crueza dos contos transmontanos de Torga, pela densidade da obra do Nobel Saramago, entre outros. E, enquanto via pela televisão, as imagens directas da marcha militar, lembrei-me daquela mulher – mais uma heroína anónima dos nossos dias, sem direito a medalha – que dizia enquanto olhava o marido ex-combatente, de olhar vazio: “sou mulher dele… mas também sou mãe… sou tudo, porque ele está completamente incapaz de gerir a sua vida … e sobrevivemos com enormes dificuldades.” São os tais soldadinhos de cartão, usados como fraldas descartáveis de usar e deitar forma. Serviram-se deles, e demitiram-se da responsabilidade de os apoiar na agonia. E esta não é, certamente, para todas estas sacrificadas famílias, a ditosa PÁTRIA amada. É a pátria parda.
Quito Pereira
(ex-combatente na Guine)

7 Comentários:

Blogger RI-RI disse...

Boa, Quito!

5:00 da tarde  
Blogger Unknown disse...

Caro Senhor Quito Pereira
Li a sua bela prosa "A PATRIA PARDA", como costumo ler todas as suas intervenções no blog "CAVALINHO SELVAGEM", onde, quando assim o entendem, são publicadas as minhas "histórias de gente simples".
Permita-me que "assine por baixo" das suas intervenções, no blog.

Sou Beirão, da Beira Baixa, por nascimento - conc. de Mação- e, duplamente, por adopção, da Beira Alta - casei no Rochoso-Guarda.

Não caberá, nesta crítica, a inserção de 2 das minhas "folhas soltas", publicadas no blog "maisfolhassoltas.blogspot.com",com os títulos "PRESENTE" e "VALORES,UTOPIAS E EXEMPLOS".

Aliás, estas publicações, estão, tal como as histórias de gente simples,à disposição do Senhor José Leitão, para publicação no vosso blog. Por razões que bem conhecerá, não têm sido publicadas com muita frequência, mas melhores tempos virão.

Também estive na Guiné "1966 a 68" e, nem sei bem porquê, tem-me fugido a caneta para assuntos diversos, quando penso escrever qualquer coisa sobre a guerra. Mas HÁ-DE CHEGAR O DIA EM QUE OS IMPULSOS SE SOBREPORÃO.Quarenta e dois anos são já suficientes para poder ser objectivo.

Ao seu dispor

Prof. José Valente

5:00 da tarde  
Blogger Manuela Curado disse...

Pungente texto em memória de todos aqueles que passaram tais tormentas.
Tive a sorte de não ter homens na família sujeitos a tão difícil sina.
Foi por isso que a pouco e pouco fui tomando conhecimento de tão trágica realidade.
O egoismo, a ânsia de bens materiais, a necessidade bélica e a falta de principios de reciprocidade arrastam avassaladoramente a humanidade.
As guerras continuam.
O mínimo que
podemos fazer no nosso dia a dia é cultivar o bem e "amar o próximo como a nós mesmos".

Palavras de, Jesus Cristo.

9:52 da tarde  
Anonymous Prof Jose Valente disse...

Caro Sr Quito Pereira

Li a sua bela prosa "PÁTRIA PARDA" como venho lendo todas as sua intervenções no "CAVALINHO SELVAGEM", onde, quando entendem, publicam algumas das minhas "histórias de gente simples".

Permita-me que, antes de mais, afirme que "assino por baixo" das suas intervenções e, muito particularmente da acima referida.

Sou Beirão, da Beira Baixa, por nascimento - conc de Mação- e depois por adopção - casei no Rochoso-Guarda.

Tenho no blog "maisfolhassoltas.blogspot.com" duas publicações: "Presente" e "Valores, utopias e exemplos" que se referem aos valores que defendemos e que junto com as minhas "histórias" estão à disposição do sr. José Leitão para publicação no vosso blog.

Por razões que espero tenham já sido ultrapassadas, não têm sido publicadas colaborações minhas, mas continuo a ler, todos os dias, o blog e com total disponibilidade.

Também estive na Guiné - 66 a 68 - e, não sei bem porquê, tem-me fugido a caneta para assuntos diversos, quando penso escrever sobre a guerra. Talvez agora os mais de 40 anos sejam já suficientes para poder fazê-lo.

Com os melhores cumprimentos

Prof. José Valente

10:28 da tarde  
Blogger Teresa B disse...

Como sempre, um belíssimo texto do Quito...
Eu, ao contrário da Nela, tive os meus três irmãos por lá, dois ao mesmo tempo, contra o que eram as 'regras'...
Lembro-me demasiado bem do sofrimento da minha Mãe durante todos os anos que os filhos andaram numa guerra que nada lhes dizia.

12:54 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Caro Prof Jose Valente!

Os "episodios da guerra colonial"...dariam "panos para mangas"...Eu proprio escrevi as minhas memorias....de um "inferno" vivido no north de Mozambique!!!
Este meu amigo Quito e e sera sempre um "autor preferido", tal a beleza sentimental...com que escreve!
Quanto as suasion "histories de gent simples", elas avolumam-se na minha secret aria, e serao publicadas no tempo oportuno. E ja agora se me permite, como colaboro noutro brogue, de gent da minha geracao, as publicarei tambem no "Cabrito do Sico"
cordiais saudacoes....e um abr ao Romancista.

Jose Leitao

11:23 da manhã  
Blogger Chico Torreira disse...

Excelente na escrita e no fundo.

2:35 da tarde  

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