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domingo, 22 de abril de 2012

PORTUGAL VISTO POR LOBO ANTUNES

NAÇÃO VALENTE E IMORTAL

Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.

Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade. O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário, dúzias deles. Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito. Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.
Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha.
Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar. Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.
Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.

(crónica satírica de António Lobo Antunes, in visão abril 2012)

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3 Comentários:

Blogger Manuela Curado disse...

PORTUGAL escapelizado com bisturi...certeiro!

8:48 da tarde  
Blogger Chico Torreira disse...

Este artigo poderia ter sido escrito em relação a actos praticados por estes lados ou em muitos outros países. Só que aqui, certos políticos e certos sindicalistas têm tido problemas de todos os estilos por aquilo que fizeram.

Os empreiteiros de grandes empresas garantiam a certos políticos de serem eleitos, "eleições com chaves na mão", em troca de uns bons contratos. Isto tudo foi posto cá fora pelos jornalistas de inquérito que quando o fazem têm provas devastadoras, como fotocópias de documentos e vídeos de conversas, etc. A polícia nessa situação tem que investigar.Até conseguiram obter um vídeo de uma reunião numa central sindical e foi o bom e o bonito ver tudo na televisão. Alguém lá esteve dentro.
Um caso esclarecedor pois há outros de milhões muitos superiores, é o caso da limpeza das bocas de incendio: em certas cidades ficava a CAN$14.00 (€10.86)/cada, noutras a CAN$45.00 (€33.81)/cada e noutra a CAN$650.00(€497.36)/cada. O campo dos empreiteiros ou empresas construtoras, dizem que é uma mafia geral em todo o mundo nas grandes obras, principalmente do estado. Compra e vendas de terrenos camarários, é um tratado. Está tudo a ficar descoberto. Bem, a semana passada foram presos quatorze actores nos quais já giram cabeças altas mas parece que está para breve ( esta ou próximas semanas, ou pouco meses,) a prisão de mais umas dezenas. Aí vão ser umas centenas de milhões de dólares para não dizer mais, pois vão tocar nas cãmaras das grandes cidades. E o que mais vai aparecer, quando isto tudo fôr desvendado em pleno tribunal.
Além disso também há a austeridade: ainda hoje uma "ministra federal" vai ter de se explicar porque é que mudou de um hotel de cinco estrelas para um de longe muito mais caro. Só um refresco num copo, custou CAN$16.00 (€12.26) do nosso bolso.

Os sindicalistas a que me refiro atribuíam os lugares nas obras a pessoal de certos sindicatos. Esses tinham trabalho mas os outros que emigrassem, como aconteceu para darem comida à família. Noutros lugares, davam bons empregos aos do "bom" sindicato mas todas as semanas passavam para receber o devido, que dizem andar numas duas a três centenas de dolares/semana/pessoa(€153.50 a 230.25), dinheiro na mão.
Por outro lado, em certas obras só trabalhava o pessoal do sindicato indicado. O material para essas obras, tinha que ter uma vinheta indicativa que tinha sido trabalhado na origem por pessoal do sindicato em questão.
Os jornalistas de inquérito dizem que os tubos de um pipeline que chegaram a uma obra e não tinham vinheta, foram cortados novamente, soldados por pessoal do sindicato para lhe ser posta a vinheta e a seguir puderem continuar o trabalho. O empreiteiro para obter a paz, deu CAN$12.000.00 (€9,191.34) . O responsável da central sindical, negou mas a vinheta foi posta para quem quiz ver na televisão. É claro, que isto tudo vai saltar e só falei de "pequenas" coisas. Os tribunais precisam de trabalho e é aqui que está da diferença.
Em todo mundo há quem faça de tudo: desde os honestos aos vigaristas. Só que os vigaristas devem dar contas em tribunal como na Islandia e aqui. Pode durar mais ou mentos tempo. O caso dos sindicatos já vem de há dezenas de anos mas logo que descobertos, vão a tribunal. Aí vai saindo uma coisinha ou outra mas ainda há muita mentalidade do passado que mantem os prevericadores em autênticos pedestais.
Por outro lado, vimos de uma ditadura aonde certa liberdades eram restritas.
Por seu lado os responsáveis actuais deixam sair e entrar livremente os cidadãos portugueses, falarem à-vontade e votarem com a máxima liberdade. As pessoas até pensam que vivem em democracia pois mesmo que se desloquem ao estrangeiro, só se podem aperceber de um ou outro problema no momento. Não digo que a culpa é dos juízes pois não são eles que fazem as leis, nem são eles que abrem e dão seguimento aos inquéritos mas não haja dúvidas que entre outras coisas, há uma profunda falta de justiça a que este artigo faz alusão.

7:28 da tarde  
Blogger Chico Torreira disse...

Tendo-me referido no comentário acima a um abuso de utilização de dinheiros públicos, acaba-se de saber que a ministra federal da Cooperção Internacional Bev Oda repôs CAN$1600.00 (€1.227.44), pois estando numa conferência no Grange St. Paul's Hotel em Londres, preferiu ir para o Savoy cujo o preço fica acima do dobro. Estou convencido que ainda vai dar mais qualquer coisinha pois utilizou uma limusina quando havia taxis disponíveis. É caso para dizer que os países "pobres" têm que aproveitar todas as migalhas.

11:36 da tarde  

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