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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O BMW amarelo

BMW

O herói desta história é um “menino muito bem” de Coimbra e tem um nome pouco comum: Baltazar, Caetano ou Belizário… pouco importa. Importa que corriam os famosos anos sessenta e que o alfabeto determinou que ficássemos lado a lado, nas seis provas que tivemos de enfrentar para termos acesso ao ensino superior. Proponho agora, passado quase meio século, que o baptizemos de Bráulio. Não se trata de uma escolha feita às cegas. Se repararem bem, verão que desse emaranhado de letras quase se extrai a palavra burlão, que sempre associo ao seu nome.

Eu já conhecia o Bráulio da minha escola, onde se destacara pela cabulice e pela exibição de roupa de marca e calças à boca-de-sino, coisa rara naquela época. E também por possuir bolsos mágicos, de onde nunca parava de escorrer a massinha quanto bastasse para uma existência à larga, nos cafés e nas salas de bilhar a que emprestava a sua classe. Trabalhar… trabalhar a sério, só o vi mesmo na procura incessante de interlúdios musicais e discotecas, necessidades básicas que, naquele atraso de vida, nem sempre eram fáceis de suprir.

De barriga cheia, e com cama, mesa e roupa lavada, pouco ou nada apoucava a santa existência do nosso Bráulio… não fora um pequeno nada a ensombrar a sua regalada vida: é que o baboso papá, um castiço comerciante da Baixa, era um chatarrão. Volta não volta, impunha ao único filho varão a conquista de um “canudo”, a gíria usada para designar os enrolados diplomas de licenciatura, passados pela Universidade de Coimbra.

Compreende-se a motivação do “velho”. Amargando a desprezível condição de “futrica”, que é o nome que os “doutores” lá do sítio atribuem aos “atrasados mentais” sem percurso académico, o Pai Bráulio nascera e fora criado numa terreola que faz da sua Universidade um santuário e de cada licenciado uma eminência. A grande maioria delas muito pardas, acrescente-se...

Coimbra prima pois por sofrer as influências de um microclima como não existe outro, sendo a cidade mais anilhada do mundo: o seu bispo exibe naturalmente um brasão encastrado num enorme cachucho de ouro e pedras preciosas, enquanto os padres e as freiras usam anel ou aliança; mas também os resquícios da nobreza decadente insistem em ostentar as antigas distinções, ao lado de licenciados plebeus que gozam da prerrogativa de se adornar com típicos anéis de pedras coloridas, conforme as Faculdades. Um anel de curso era um pormenor que enobreceria a família dos Bráulios, e o pai até já tinha apalavrado um, de topázio amarelo, para a festa de formatura do rebento:

- O meu filho vai para Medicina. – Proclamava ele, como se aquela credencial lhe permitisse a reincarnação numa casta superior. - É bom, não acham?...

Seguro das influências paternas, também o Bráulio Filho nadava em certezas, que nem uma série de folhas muito negras, no ensino oficial, conseguira abalar. Para quê turvar o verde esperança da sua existência despreocupada, se toda a paisagem podia ser retocada à pressa por bons pintores, com explicadores à hora e colégios particulares à discrição? E se, quando preciso fosse, o papá jogaria a cunha certa, porque era tudo uma questão de tempo e dinheiro. E foi assim que, calmo e seguro de si, o rapaz se apresentou às provas finais, no liceu:

- Olá Bráulio, então por aqui?... – Cumprimentei-o eu, que estava lá para o mesmo.

- Tás bom, pá!... – Respondeu ele, virando costas, porque nunca fora com a minha cara. Mas, a certa altura, abrindo o canhenho às cegas, voltaria atrás para dar um ar da sua graça: - Estudaste esta merda? É que vai sair... – Falou com a cagança de quem possuía informação privilegiada, comprada a peso de ouro nos corredores do Ministério da Educação. Para, no final, elevando o dedo indicador direito ao olho, concluir em alta voz, de modo a que todos ouvissem: – Quem é burro, que não o seja!...

Eu nem pestanejei, mas a vizinhança entrou logo a folhear a livralhada, no frenesim de colar a cuspo uma qualquer picuinha de última hora. No final, as previsões haviam saído muito furadas, mas o Bráulio acertara numa dica e não se cansava de distribuir sorrisos e abraços pelos seus admiradores, já transformado em estrela da companhia.

- Eu não vos disse! Para a próxima, venham mais cedo.

Dava que pensar. Ele, que naquele liceu nunca dera uma para a caixa das esmolas, de repente havia-se catapultado para os píncaros da catedral. No exame seguinte, o pessoal nem dormiu, com medo de não o ouvir discorrer sobre as armadilhas que estariam montadas:

- Boas notícias! – Afiançou, chegando em cima da hora, mas a fazer concorrência à “Miss Simpatia”. Para depois apresentar uma desculpa de ocasião: – Atrasei-me, porque o meu explicador, que é amigo de um gajo que trabalha em Lisboa, só ontem à noite é que conseguiu o ponto…

Ainda houve tempo para revelar alguns segredos, mas a popularidade fácil é quase sempre efémera:

- Afinal, não saiu nada do que disseste… - Protestou alguém, no final.

- Trocaram-nos os pontos, carago! Venderam-me o da segunda chamada…

Quem o ouvisse falar nunca o levaria preso e a conclusão só podia ser uma:

- O Bráulio é um gajo porreiro! Até nos convidou para uma festa...

O convite tinha sido vagamente apalavrado, mas o “gajo porreiro” que eu conhecia, do género de nem a afiadeira emprestar, era muito diferente daquele que estava a ser publicitado. “Coimbrinha” dos quatro costados, até a mim o Bráulio olhava por cima da burra e nunca se misturaria com malta daquela, uns parolos que acabavam de chegar das “berças”. Eu achava-o preguiçoso, egoísta, vaidoso e fanfarrão… um “cagão” que arrotava postas de pescada e nem precisava de se meter em apertos, para aldrabar toda a gente. Temperado com tais ingredientes, nunca eu recomendaria aquele assado. Mas para quê, ali, remar contra a maré?

- Não há rapazes maus. – Limitei-me a comentar.

Nos exames que se seguiram, com os ventos a correr de feição, o Bráulio remeteu-se a sábias encolhas:

- Quando souber de alguma coisa, digo. Mas parece que estamos lixados. Apanharam o tipo que vendia os pontos, lá em Lisboa.

E assim se foram ultrapassando os obstáculos, até à prova de Desenho, que foi a última:

- Então Bráulio, estás preparado?

- Fracote… - Confessou. – Vim só mesmo para ver como é. Para o ano…

A entrada para o exame foi caótica. Lembro-me de, ao fim de muito tempo, nos terem arrumado no palco do grande ginásio do liceu, voltados para o recinto à cunha, no meio de centenas de candidatos. Nas provas anteriores, com língua a mais e caneta a menos, a versatilidade do Bráulio ainda lhe permitira responder a uma ou outra pergunta, tendo eu próprio lhe decifrado algumas charadas. Tinha a certeza de que os seus resultados só podiam ser catastróficos, mas, dessa vez, a sua gaita nem assobiara. Ao terminar o meu ponto, dei de caras com um moço acabrunhado, que nem um só risco esboçara. Aquelas geometrias complexas, transcendiam-no por completo:

- Vou sair. – Anunciou, em surdina. – Já estou farto desta merda.

- Espera, amigão! É só copiares isto!... – Propus, colocando a minha prova a jeito.

- Não percebo nada disso, carago!

Só então percebi que, para ele, tudo aquilo era chinês. Teria alguma vez chegado a abrir um livro? O tempo da prova ia por metade e eu havia safado o papel no centro da folha, ao apagar algumas hesitações iniciais, com a borracha. Desconsolado com o aspecto estético, já resolvera passar o desenho a limpo, servindo-me de uma folha nova que tencionava solicitar. Mas, agora, posto perante aquele drama, até me esqueci de desconsiderações passadas:

- Vou desenrascar-te! – Decidi, sem sequer medir os riscos do acto a que me propunha.

Nas provas anteriores, que tinham decorrido em vulgares salas de aula, era regra os professores autenticarem as folhas das provas logo no início, depois de identificados os alunos através do bilhete de identidade. Dessa vez, porém, na confusão do ginásio, alguém se esquecera de subir ao palco e cumprir tal prática. Curiosamente, o Bráulio nem sequer se dignara preencher o cabeçalho e eu, no afã de completar a prova, também não tinha subscrito o meu. Ambas as folhas estavam “sem dono” e foi só trocar a dele, que estava virgem, pelo meu rascunho. Mesmo a tempo de aparecer um professor novato, a cumprir tardiamente o seu dever.

- Achas que dá para passar? – Perguntou-me o Bráulio, à saída.

- Dá, pois! E até vais ter boa nota! – Assegurei, ainda sem medir bem o alcance real das minhas palavras.

- Ainda bem! Assim, já não chumbo o ano.

Ele afastar-se-ia pouco depois, sem sequer me agradecer, e não mais o avistei. Mas Coimbra é uma cidade pequena e, em breve, transpiravam notícias sobre o estrondo que ia pela Baixa: o Bráulio reprovara com classificações baixíssimas, mas salvara a temporada com 20 valores, a Desenho, um recorde absoluto entre setecentos candidatos. Uma verdadeira “obra-prima” deixara no liceu, erguida com muita ciência sobre centenas de candidatos reprovados.

- E só o meu colega do lado é que teve dezoito. – Gabava ele a proeza, antes de, com alguma propriedade, proclamar: – Ele até podia ter tido vinte, como eu, mas há gajos tão estúpidos que nem copiar sabem…

- E a medicina? – Perguntavam.

- Qual medicina, qual carapuça! A medicina que se lixe, porque o rapaz vai seguir para arquitectura. – Anunciava o papá, aos quatro ventos. E a fazer inchar o pimpolho, acrescentava: – E eu que nunca tinha reparado na habilidade dele…

- Vai ser um grande arquitecto… - Vaticinavam os amigalhaços, erguendo as taças.

O champanhe bairradino depressa se esgotou e, semanas depois, já a gozar merecidas férias balneares, o Bráulio deu em passar por mim, acelerando um flamejante BMW amarelo, descapotável, um brinde novinho em folha com que fazia sucesso no meio feminino e que antecipava uma promissora carreira. Esquecido do “amigão” que lhe valera em momentos de crise, nunca me dirigiu palavra, antes fazia gala em me olhar por cima do volante, com a presunção de quem segurava a roda que fazia girar o mundo:

- Tens a mania que és esperto, mas andas de alpercatas... – Parecia dizer

- Vai tu! - Desopilava eu, disposto a enfrentar o mundo.

Os anos passaram e o Bráulio nunca completou qualquer cadeira do curso liceal. Com a Revolução dos Cravos, a sua vida daria uma enorme volta, porque a empresa
do pai não conseguiu resistir aos rigores da nova contratação social. Com a sua doce indolência comprometida por esse trambolhão, deu em viver de expedientes baratos, de intermediações manhosas e da ilusão de compras e vendas que não raro desesperaram os incautos que nele confiaram. Adivinham-se passagens pelos tribunais, onde se deslocava em carripanas rascas, pertencentes sabe-se lá a quem. Nenhumas “arquitecturas” úteis se lhe reconhecem e só não lesou muito mais gente porque, sendo antipático e burro, nem como burlão teve sucesso. Desde que ficou por sua conta, que é defensor acérrimo de uma sociedade sem classes, onde não haja exploradores nem explorados. Coerente com essas posições, não perde oportunidade para apontar o dedo acusador aos proprietários dos veículos de alta cilindrada, especialmente se fãs da BMW.

Depois destas peripécias, alguma paixão comum havíamos de cultivar. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, também eu nunca ganhei coragem para adquirir um flamejante BMW amarelo, descapotável, que ainda hoje é o automóvel dos meus sonhos.
Candido Manuel Ferreira

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