31 de Dezembro. Hoje sinto-me como um velho cão rafeiro, quando busca desesperadamente comida num caixote do lixo qualquer. Aquilo que os outros não querem, a ele chega-lhe
(podia usar a metáfora de um ser humano, sem abrigo, mas dói-me a alma só de pensar nisso.)
porque já nada espera. Mexe, com fúria por vezes, esperando encontrar no meio de tantos detritos algo de bom que lhe traga a salvação. Por mais um dia. Pode acontecer...
O meu caixote do lixo chama-se ... memória. Ao contrário do cão, fui eu que lá guardei o que já passou e que um dia posso querer voltar a usar, redentoramente. Sou o autor das minhas (des)ilusões, dos meus próprios dejectos. As memórias, as minhas memórias,
(alguém pode ser dono das suas memórias?)
com o tempo perdem nitidez, fogem-me do alcance, tornam-se puros fragmentos de um eu estilhaçado. Não que se tenham necessariamente extinto, talvez antes porque desaprendi de as ir reavivar regularmente, pela ordem natural que já existiu e que o tempo interior desconstruiu. Ou porque o tempo as estragou, tornando-as em restos contaminados que só me fazem mal quando me reapodero delas. Ou ainda porque deixei de as reconhecer como minhas,
(poderemos alguma vez ser donos das nossas memórias?)
ou ainda porque o meu outro as quer simplesmente esconder do outro eu.
E depois, mesmo que os poços da memória não se tenham ainda esgotado, mesmo que baste apenas um fim de tarde de um qualquer dia último do ano para me reapossar do passado, para quê recordar? Recordar é
(quantas vezes!?)
algo morrer de novo dentro de nós. Ou sofrer. E se alguém vem procurar ensinar-nos o caminho de volta das recordações
(lembras-te quando ...?)
quantas vezes não rosnamos em vez de sorrirmos? Não as queremos agora para nós mas, possessivos, também não aceitamos que no las roubem, mesmo quando a memória da memória nos insinua tratar-se apenas de deformações de um passado irreal.
Mas... Pode acontecer... que remexendo bem no fundo encontremos uma palavra aqui,
(amor)
outra acolá,
(solidão)
ou mesmo uma curta frase
(Serra do Gerês)
que remete para os sonhos realmente vividos.
Aventurando-nos na colagem de fragmentos de frases,
(Era madrugada alta quando nos conhecemos. Uma parte apenas, ainda. Timidamente, aproximamo-nos lentamente. Primeiro através do olhar, depois o cheiro, o tacto por fim. Aceitámos a loucura, reinventámos Baudelaire e voámos em direcção ao mar à procura de conhecer o todo que faltava, os sabores. Ao longe o uivo dos pinheiros forçava o entrelaçar dos corpos na noite escura, nós fingindo o medo (ou o frio?) que não tínhamos. Através do estar queríamos o ser. Mas, no entanto, ainda não era o tempo das vindimas e deixámos que a água salgada, nos consumisse o ardente desejo e os corpos não acompanhassem o ritmar crescente das ondas. Nas bocas ficou o amargo da espuma interrompida de eros. Amanhã talvez, quem sabe, a tempestade reapossar-se-á dos nossos corpos desejantes, numa erupção impossível de conter nem com toda a água do mundo, fundindo-nos num novo ser único, nós. Hoje, porém, o mar serenou(-nos)-se! )
aventurando-nos na desfragmentação do nosso interior, com sorte podemos criar sentidos. Pode acontecer...
31 de Dezembro. Amanhã é um velho dia novo, que conhecemos bem das memórias adulteradas do passado. Não procurarei nele novos começos. Com o passar inexorável do nosso tempo, enquanto esperamos que anoiteça definitivamente, já não recordamos o que vivemos. Vivemos com o que recordamos.
Recordar é correr o risco do engano. Estarei preparado para isso? Ou, é isso que quero mesmo?
Amanhã vou ver o mar...
Poderei aí então gritar, como o poeta morto no outro 11de Setembro,
(mas a quem isto interessa?)
confesso que vivi?
Vale a pena tentar!
Jó-Jó
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