(memórias de um fim de tarde)
Por uma rua estreita, desço ladeira abaixo em direcção ao fundo do povo. Naquele fim de tarde, vou cumprimentando os residentes. Do lado esquerdo uma oficina de ferreiro. Entro. Lá dentro, debruçado sobre uma banca corrida, o Virgílio nem dá conta da minha presença. Com um lápis, risca minuciosamente um molde para uma peça em ferro que vai fabricar. A concentração e o rigor são essenciais à arte. Do bolso traseiro do fato-macaco tira uma fita métrica e é então que dá pela minha presença. O lápis recolhe para trás da orelha, e apertamos a mão com vigor. Falamos de assuntos variados, desde a seca prolongada, às preocupações com os nossos filhos, ele que tem uma filha a residir em Coimbra. Pergunto-lhe então pelo portão que lhe encomendámos para o “Chão da Barreira”. Ficará pronto breve – diz-me. Despeço-me então e regresso à rua. Passo pela mercearia da Norita que me vê e me acena com a mão, a sorrir. Dobro depois a esquina e entro na oficina do Txico Sapateiro. Damos dois dedos de conversa. Espontaneamente, pede-me os sapatos. Engraxa-os um a um, alternadamente, enquanto vai conversando. No fim, quero pagar o trabalho, e ele diz-me com aqueles olhos pequeninos e brilhantes e um sorriso nos lábios:
- Paga-me com a amizade….
De novo regresso à rua. Curvo à direita e cem metros à frente o fontanário da aldeia, construído em 1937. Com a água a jorrar da bica, sento-me e vou-me refrescando.
Por uma estreita viela, chego à rua do Quelhito. Passo junto ao pátio e telheiro do falecido Duarte Ferrador e entro numa casa, hoje desabitada. Subo ao terraço. Os olivais estendem-se a perder de vista, e, ao longe, a contra-luz, a Serra do Moradal.
E foi ali, sentado num banco de pedra, que me lembrei do “Ti” Raimundo. Um dia, precisamente naquele local, falou-me da “Quinta do Búzio”, que na época de cinquenta dava trabalho a muita gente. Recordou a sua primeira função de “aguadeiro” e de “tirador” de raízes bravas das parreiras, depois de cavadas. Mais tarde de cavar de sol a sol. Alguns, já no Outono da vida, chegavam ao fim do dia “com os braços dormentes e os corpos exaustos”. Ao Sábado, recebiam a magra “féria”, que por vezes nem chegava para pagar ao moleiro a “taleiga” da última cozedura de pão centeio ou de milho. No fim, o Zé Martinho, por ordem dos patrões, mandava dar uma “pingorrada” aos trabalhadores. Uns bebiam vinho, outros, jeropiga, relembrava este homem simples, alto e esguio, que de chapéu pousado nos joelhos, ia olhando quase absorto e por momentos em meditativo silêncio, os extensos olivais.
Por vezes, o António Duarte trazia o jornal “O Século” e o Valentim, o único que sabia ler, lia soletrando, e assim sabíamos as notícias do mundo – acrescentava...
E hoje, 30 de Julho de 2009, data em que vou alinhando estas simples palavras para que façam algum sentido, relembro o “Ti Raimundo”, que atingiu a bonita idade de noventa anos, e descansa das agruras de uma vida de martírios no cemitério de Juncal do Campo.
Agora, que da Serra do Moradal já só avisto um poente incendiado, regresso a casa, meditando na vida de todos aqueles que, de sol a sol, mourejavam na “Quinta do Búzio” por um salário de miséria, em que a fome e o sofrimento não eram palavras vãs.
Este singelo e mal alinhavado texto, foi feito em sua homenagem. Dos que de si deram tudo. E em troca tiveram nada.
Quito